Umas das coisas que me lembro com certa clareza de um livro importante da adolescência é uma divagação sobre a memória no inicio do primeiro capítulo de Sem olhos em Gaza, um romance de Huxley[1]. Naquele relato, o personagem orbitava entre a rudeza dos trajes da moda e a nostalgia de pureza e doçura que a imagem das fotos daquelas criaturas observadas pelo personagem produzia no interior de seus devaneios. Exatamente neste ponto, em meio ao turbilhão de pensamentos, eis que se impõe a definição importante que me perseguira até então – não com estas palavras, mas com a acidez irônica própria do gênio literato: O desenvolvimento tecnológico dificilmente é reconhecido como tal; nunca enaltecemos o fato de ter a disposição um automóvel que nos permite encurtar distâncias, mas apenas praguejamos quando o pneu fura ou o motor para de funcionar.
Um problema da memória, sobre a memória, sobre o problema da memória que sempre retorna em meus devaneios como aqueles do personagem. O efeito de tecnologias sobre a memória ou sobre os processos cognitivos que envolvem o ato de recordar parece ser um problema fundamental para compreender os “amalgamas” capazes de serem feitos entre homem e máquina na atualidade. Embora este problema, ou certo aspecto deste problema, tenha tomado espaço em minhas indagações sobre uma mudança radical na Antiguidade, uma série de elementos “novos” fez-me dedicar atenção a uma problematização atual – nem tão atual assim –, a respeito dos efeitos da tecnologia contemporânea, especificamente, ao computador e a internet sobre a memória das pessoas[2].
Se por um lado, pouco tempo depois da invenção da escrita no Ocidente o impacto de uma “tecnologia da escrita” como diz Havelock[3], mudaria de modo fundamental a relação “cognitiva” de armazenamento de conteúdo cultural que afetaria o “estado mental” das pessoas, por outro lado, uma nova interação técnica, homem-máquina, homem-computador, parece estar produzindo um efeito tão similar ou mesmo fundamental no trato com a memória.
Apenas para ilustrar um desses exemplos parece ser o diagnóstico realizado por pesquisadores do chamado “efeito Google” na memória das pessoas. Essa pesquisa tenta, num nível obviamente experimental e reduzido, investigar as consequências cognitivas da posse de informações “na ponta dos dedos” a partir de experiências com estudantes de Harvard.
Evitando uma visão puramente conservadora de apologia ao modelo de “domesticação” a partir dos livros, isto é, o histórico “humanismo” – do qual critica Sloterdijk –, que auto-dominou o homem em detrimento dos perigos de bestialização de outras “mídias”, enxergo o problema com cautela, com uma espécie de prudência que permita compreender este novo amalgama homem-máquina, homem-técnica, junto às consequências também futuras dessas interações que implicam repensar as valorações decorrentes dai, suas condições de aparecimento e desenvolvimento no interior do que chamamos vida. Que nós também sejamos frutos dessa “domesticação” – e por isso tenha iniciado esse texto com a memória de um livro –, isto não impede que a olhemos de perto, a questionemos e busquemos compreender as novas e múltiplas formas de interação que sempre exigiram habitar este “parque humano”.
[1] A precisão dessa menção pode ser contestada uma vez que se trata de uma memória remota.
[2] Isso porque não trato aqui do problema da “seleção e manipulação genética” que é tão mais importante ser discutido, bem como polémico e desafiador. Veja-se, as discussões “saudáveis” em torno do texto Regras para o parque humano de Sloterdijk.
[3] Especialmente, HAVELOCK, A. Eric. A revolução da escrita na Grécia e suas conseqüências culturais. Trad. Ordep José Serra. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.
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